DA BIODIVERSIDADE À BIOTECNOLOGIA VEGETAL: A QUESTÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS (CTAs) NO BRASIL

  • Beatriz Cobbo de Lara Mestrado UniBrasil
Palavras-chave: Biodiversidade, Conhecimento tradicional associado (CTA), Lei da Biodiversidade, Direitos fundamentais.

Resumo

Como efeito do modelo econômico é certo que os Estados estão inseridos em uma discrepância entre duas funções que devem garantir: o desenvolvimento econômico e o equilíbrio ecológico. O fato é que aqui cabe bem o ditado é melhor precaver do que remediar. Nesse sentido e, analisando superficialmente as notícias incessantemente divulgadas, verifica-se uma morte planetária periódica, célere e cega aos olhos da humanidade, portanto é prudente voltar os olhos aos riscos da biotecnologia vegetal e a responsabilidade própria do ser humano, para que em um futuro próximo não seja acusado de omissão frente à morte da fauna e da flora. Sabe-se que a magnitude dos efeitos colaterais da ação humana ultrapassou o que a humanidade e o ambiente podem suportar. Nesse espeque, o agravante consiste no avanço desenfreado da tecnologia e na ausência de conhecimento a respeito dos riscos que esse conhecimento pode causar à saúde humana, ao meio ambiente natural, cultural, do trabalho e assim por diante. É certo que há muita complexidade na formulação de um sistema normativo da proteção ambiental e cultural, e que abarque todas as situações resultantes da engenharia genética vegetal (biotecnologia vegetal). Aliás, sobre esse assunto, países em desenvolvimento como o Brasil terão uma dupla dificuldade comparada àqueles ditos desenvolvidos, haja vista que além de priorizar o desenvolvimento, deverão acoplá-lo ao meio ambiente. Nesse contexto, diante da relevância do assunto enquanto garantia da vida, da saúde e da segurança da população, a pesquisa se dá no sentido do preceito do artigo 225 da Constituição Federal, observando a ideia de atender as necessidades dos presentes sem comprometer as futuras gerações. Isso porque, o tema transcende o judiciário exclusivamente particular para um interesse geral da população. Nesse sentido, a pesquisa une a biotecnologia vegetal (manipulação genética vegetal) aos conhecimentos tradicionais associados (CTAs) para depois relacionar com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Incialmente cabe destacar que a manipulação genética de plantas, sementes e a consequente monopolização de grandes empresas na área da biotecnologia vegetal impactam sobremaneira o meio ambiente natural, cultural, artificial e do trabalho. Da biotecnologia vegetal podemos extrair questões controversas da sociedade brasileira, como a questão da rotulagem de alimentos transgênicos, os casos de biopirataria nas florestas brasileiras, o êxodo rural que decorre da mecanização da agricultura, o debate sobre a reforma agrária, a relação das empresas farmacêuticas com as populações tradicionais. Assim, pela abrangência do assunto e por uma questão didática, optou-se por abordar tão somente a biotecnologia vegetal e com relação aos conhecimentos tradicionais associados (CTAs). Sabe-se que a informação transparente e a participação da população nas tomadas de decisões representam mecanismos de efetividade do Estado Democrático de Direito. Ademais, a complexidade do tratamento dado aos organismos geneticamente modificados vegetais pelo homem no âmbito nacional e internacional provoca a necessidade de um sistema coeso de normas, ou que ao menos possua alguma afinidade, justamente para possibilitar ao judiciário garantir através de suas decisões, os direitos fundamentais no Brasil. Por tal razão, é que para mais da mera ratificação do país em tratados sobre o assunto se faz necessário pesquisar a efetividade desses documentos no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, o estudo justifica-se pela melhoria e a maior efetividade dos mecanismos de controle já existentes das pesquisas biológicas que recombinam genes de vegetais e sua relação com os conhecimentos tradicionais associados (CTAs). Isto para que sejam satisfeitas as necessidades das futuras gerações. O objetivo da pesquisa é realizar a revisão bibliográfica sobre o tema, analisando a respectiva evolução doutrinária, jurisprudencial e normativa, demonstrando como  a biotecnologia vegetal e os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) têm relação umbilical com os direitos fundamentais. E por isso, merecem atenção especial. Assim, a pesquisa se deu – entre outras regulamentações – sob a análise da recente Lei da Biodiversidade, nº 13.123 de 2015, que regulamentou o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição Federativa da República do Brasil de 1988, bem como o artigo 1º, a alínea “j” do artigo 8º, a alínea “c” do artigo 10º, o artigo 15º e os §§ 3º e 4º do artigo 16º da Convenção sobre Diversidade Biológica. A Lei da Biodiversidade dispõe ainda sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade, além de revogar a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Aparentemente, o pretexto da referida normatização foi benevolente e altruísta com as populações tradicionais do país e com o meio ambiente. Ousa-se dizer aparentemente, porque da análise pormenorizada do seu conteúdo, alguns dispositivos destoaram claramente do teor dos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e, da própria Constituição Federal de 1988. Compulsando a Lei, vê-se que alguns dispositivos colocam em cheque a legalidade de toda a norma, tanto sob a perspectiva do controle de convencionalidade quanto sob a ótica do controle de constitucionalidade. Isso porque ao estabelecer a diferenciação entre conhecimentos tradicionais associados identificáveis e conhecimentos tradicionais associados CTAs não identificáveis , a Lei da Biodiversidade em alguns dispositivos, desprotegeu o direito dessas comunidades. No primeiro caso, dos CTAs indentificáveis, se não houver exploração econômica do conhecimento, o usuário submete-se apenas ao consetimento prévio e informado da comunidade (art. 10); nesse caso deve haver prova do consentimento (art. 9); no caso de exploração econômica o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) deve ser notificado do produto pronto ou do material reprodutivo (art. 16, I); o acordo de repartição de benefícios deve ser prévio à exploração do produto ou material reprodutivo (art. 16, II) e o usuário deve depositar a metade do valor devido ao titular primário do CTA, no Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios (FNRB), pois a lei presume que todo CTA é compartilhado por mais de uma comunidade (arts. 24, § 5 e 25, §1). No segundo caso, dos CTAs não-identificáveis, o acesso ao CTA independe do consentimento prévio informado (art. 9, § 2 º); se não houver exploração econômica, o usuário não precisa celebrar acordo de repartição de benefícios ou fazer depósito no Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios (FNRB); já no caso de exploração econômica, o usuário deverá ou celebrar acordo de repartição com a União ou depositar no Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios (FNRB) a quantia definida no art. 23; o usuário possui 365 dias, a partir da notificação do produto acabado ou do material reprodutivo para apresentar o acordo de repartição de benefício ao CGEN (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - art. 16, §2); desde a notificação o usuário já pode explorar economicamente o produto oriundo dos recursos genéticos. Primeiramente, é de se notar que essa diferença entre conhecimentos indentificáveis e não-identificáveis não encontra respaldo em nenhum  tratado internacional. Nesse passo, as críticas despontam no sentido de que a expressão “não-indentificável”, proposta pela Lei da Biodiversidade, abre possibilidades para interpretações distintas, interpretações que fogem à razão pela qual a Lei foi editada. Assim, a expressão CTAs “não-indentificáveis” pode ser confundida com o conceito de domínio público; pode dar brecha às empresas de biotecnologia vegetal, que com base em alegações falaciosas, como por exemplo, as dificuldades na determinação da origem do saber, não queiram comprovar o “consentimento livre, prévio e informado” aos órgãos competentes, entre outras hermenêuticas. Em relação ao direito do “consentimento livre, prévio e informado” a distinção entre CTAs indentificáveis e não-identificáveis pela Lei da Biodiversidade, também trouxe entraves. Isso porque, o “consentimento livre, prévio informado” é exigido apenas em relação aos CTAs de origem identificável. Quanto aos saberes de origem não-indentificável, ele não é exigido. O que provoca, obviamente, um descontrole dos acontecimentos por parte dessas comunidades e uma propensão ao manejo de informações por parte das indústrias, que como acima mencionado, poderão argumentar óbice na delimitação da procedência daquele conhecimento. É o que ocorre, por exemplo, no caso dos conhecimentos tradicionais associados sobre as propriedades medicinais de uma planta, onde a distinção entre CTAs identificável e não identificável é deveras complexa. Tal complexidade se deve ao fato de que normalmente o conhecimento é partilhado por várias populações indígenas, comunidades tradicionais e vendedores de ervas medicinais. Aliás, a título de exemplo, recentemente, uma pesquisa no médio Rio Negro, localizado na região amazônica, evidenciou que a população de Barcelos é detentora de um extenso conhecimento sobre o uso de plantas medicinais antimaláricas. Nessa pesquisa etnobotânica, dos 55 exemplares de plantas utilizadas para tratar a infecção por malária naquela região, 16 nunca foram citadas em outros trabalhos previamente publicados. Significa dizer que pelo menos 16 plantas poderiam ser exploradas por grandes empresas, sem a justa repartição de benefícios e sem o respeito aos usos e costumes daquelas populações. Tudo sob a alegação de impossibilidade em se dizer ou atestar qual a origem daquele conhecimento. É irrefutável o fato de que os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) são muito importantes para a bioprospecção, pois com eles as empresas reduzem em muito o tempo de pesquisa, de coleta de plantas, de isolamento de propriedades, de resultados e, consequentemente, do tempo. O custo-benefício é baixíssimo para essas empresas. Nesse passo, a classificação inédita sugerida pela Lei da Biodiversidade é “extremamente contraditória”, pois ao mesmo tempo em que procura salvaguardar o direito à cultura, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao patrimônio genético e à biodiversidade do país, abre passagens para que grandes indústrias da área farmacológica e estética se apropriem de conhecimentos tradicionais sem nenhuma reserva. Ainda, em relação à repartição de benefícios dos CTAs não indentificáveis, a nova Lei da Biodiversidade dispõe que o usuário pode explorar comercialmente o produto pronto pelo período de 365 dias e não resolver a questão da partilha justa e equitativa dos benefícios com a União ou com o Fundo Nacional para Repartição de Benefícios-FNRB. Questiona-se, qual o bem ou interesse esse dispositivo pretende proteger? A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), ratificada pelo Brasil, prevê a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos CTAs já em seu preâmbulo. Assim, há um manifesto desajuste neste ponto entre normas infraconstitucionais e normas internacionais ratificadas pelo país (controle de convencionalidade), bem como o descompasso com os preceitos constitucionais (controle de constitucionalidade). Sob o aspecto participativo, das comunidades tradicionais, a Lei da Biodiversidade também deixou a desejar. Isso porque, houve um “déficit” democrático enorme na sua construção. Foram poucas as comunidades ou representantes dos interesses dessas comunidades que participaram efetivamente desse processo. A norma foi elaborada em sua maioria sob a ótica do setor empresarial, o que confere, obviamente, insegurança quanto ao seu conteúdo. Dessa forma, o vácuo legislativo, a incongruência com relação a outros diplomas ratificados pelo país, bem como a insuficiência fiscalizatória, agrava, sobremaneira, a atual situação das comunidades e seus conhecimentos, que se veem obrigados a assumir o papel de meros espectadores do desenvolvimento desenfreado. O desafio, portanto, é uma maior participação desses povos na elaboração de leis, planos e programas de governo. Até porque para a maioria nas comunidades tradicionais a proteção dos recursos biológicos está relacionada aos conhecimentos tradicionais, que são repassadas de uma geração para outra. Dessa forma, de tudo até aqui pesquisado pode-se concluir que: o Brasil é considerado um país rico em biodiversidade; a biodiversidade abre diversas possibilidades para um novo modelo de economia, tendo em vista que de um único espécime pode-se extrair várias propriedades de cunho econômico; a bioprospecção é atividade lícita, porém quando não é praticada em conformidade com a regulamentação dá azo à biopirataria (ilícita); a biotecnologia vegetal – leia-se: manipulação das plantas – é uma realidade válida e utilizada; o sistema de proteção de propriedade intelectual, mais especificamente na modalidade de patentes, pode servir a interesses outros para os quais originalmente foram criados e prejudicar as populações tradicionais que possuem conhecimentos tradicionais associados (CTAs); os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) estão protegidos indiretamente pela Constituição Federal de 1988; o Estatuto do índio não dispõe nada sobre o assunto; a Lei da Biodiversidade equipara os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) a patrimônio cultural brasileiro; a proteção aos conhecimentos tradicionais associados (CTAs) implica na proteção dos direitos culturais que por sua vez são considerados direitos fundamentais, o que nos permite dizer que a proteção aos conhecimentos tradicionais associados (CTAs) são direitos fundamentais; os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) possuem duplo aspecto: constituem interesses difusos e interesses coletivos; é inviável a construção de políticas públicas e normas sobre o assunto sem a participação dos grupos minoritários que convivem com o problema; a participação deve ser efetiva e não aparente quando da elaboração das normas sobre a biodiversidade, biotecnologia e biopirataria; a Constituição Federal deve reconhecer explicitamente em seu conteúdo a importância dos conhecimentos tradicionais associados (CTAs) a exemplo da Constituição Boliviana; os conhecimentos tradicionais associados (CTAs) não escapam aos interesses econômicos, políticos, científicos; é necessária a conscientização cultural e ecológica em massa; e que problemas globais merecem respostas globais, ou seja, o sistema de propriedade intelectual como fora desenhado não comporta os problemas relacionados aos conhecimentos tradicionais associados (CTAs). Nesse contexto, em que pese haver normas específicas sobre o tema, as políticas públicas e as próprias normas, na prática, estão distantes de serem consideradas satisfatórias e eficazes.

Biografia do Autor

Beatriz Cobbo de Lara, Mestrado UniBrasil
Advogada e mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia UniBrasil. Direito Tributário, Direito Ambiental e Direito Internacional.
Publicado
2020-01-21