SHAKESPEARE DESCONSTRÓI BINARISMOS DE GÊNERO

  • Anna Stegh Camati

Resumo

Uma das questões que continua sendo debatida até hoje é se os binarismos de gênero foram (ou não) superados no nosso tempo. Será que, na contemporaneidade, as mulheres conseguem se inserir em espaços públicos dominados por homens em igualdade de condições? Apesar dos avanços sociais, políticos e jurídicos em defesa da cidadania e dos direitos humanos, as estatísticas comprovam que as mulheres continuam sofrendo discriminações que dificultam sua participação efetiva na vida pública e em outros setores. O objetivo principal deste breve texto é mostrar que Shakespeare, ao criar estratégias cênicas para desconstruir os binarismos de gênero, antecipou ideias e conceitos de importantes pensadores da atualidade.     

Em seu influente estudo Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, originariamente publicado em 1990, Judith Butler, a partir de um aparato teórico interdisciplinar, reflete sobre as relações de gênero e poder no convívio social, criticando, especificamente, os binarismos, entre eles a dicotomia sexo (considerado natural) e gênero (visto como construção cultural). Para Butler, o sexo, tal como o gênero, é igualmente contingente, discursivo, histórico e cultural. Em suma, ela argumenta que ambos, sexo e gênero, são construções sociais e culturais.

Ao retomar a teoria de Erving Goffman a respeito da representação do eu na vida cotidiana, ela leva este conceito um passo adiante, interessando-se por formas responsáveis pela construção do gênero. Ao mesmo tempo, absorve ideias de Michel Foucault, o qual preconiza a existência de um corpo anterior à sua inscrição cultural, formulando a tese de que os sujeitos são produzidos e controlados por poderes regulatórios.

Os escritos de Butler constituem premissas fundamentais para a teoria do gênero como mecanismo performativo. No quarto capítulo do livro mencionado acima, intitulado “Inscrições corporais, subversões performativas”, Butler cita a antropóloga Esther Newton, a qual argumenta que a estrutura do travestimento revela um dos principais mecanismos de fabricação através do qual se dá a construção social do gênero. A partir desta premissa, Butler conclui que o ator travestido subverte inteiramente a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo, zombando, efetivamente, da ideia de uma verdadeira identidade do gênero (Butler, 2003, p.195).

Para evidenciar as contradições do discurso patriarcal, Shakespeare, por meio do uso criativo da estratégia do travestimento, estabelece uma confusão de identidades que contradiz e subverte a visão que inferioriza a mulher. A representação das personagens femininas por atores travestidos de mulher, que depois se apropriam do disfarce masculino para desempenhar papéis reservados aos homens, lança uma luz extremamente esclarecedora sobre os mecanismos de construção da propalada identidade de gênero. Dessa maneira, Shakespeare consegue subverter estereótipos e questionar crenças convencionais aceitas à época como verdades universais. Sua estratégia de borrar e confundir identidades mostra que, em vez de ser um atributo fixo em uma pessoa, o gênero deve ser visto como uma variável fluida que muda de acordo com as circunstâncias em diferentes tempos e contextos.

Para ilustrar a desconstrução shakespeariana dos binarismos de gênero, proponho examinar, brevemente, a estratégia do duplo travestimento em O mercador de Veneza, especificamente em relação à personagem feminina Pórcia, uma rica herdeira de Belmonte. O pai morto da heroína supostamente continua exigindo seu direito sobre a filha além do túmulo: a jovem comenta que não pode escolher quem lhe agrada, nem recusar quem lhe desagrada.  Porém, desde o início, fica muito claro que tudo que ela diz entra em franca contradição com aquilo que faz. É mais do que óbvio que ela manipula a escolha de Bassânio, seu pretendente favorito, no enredo das arcas, por meio de uma canção cuja letra é extremamente sugestiva.

Ao final do enredo das arcas, Pórcia profere um discurso de submissão e dependência, que seguramente parece afirmar os códigos da cultura do patriarcado: ela se diz frágil, insegura, sem lustro ou experiência, disposta a entregar seu espírito a Bassânio, agora seu futuro marido, para que este possa orientá-la. Logo em seguida, porém, assevera que era “senhor” da sua mansão e não senhora, e lhe entrega um anel, que uma vez perdido, dará a ela o direito de protesto. Vemos que, desde o primeiro momento, ela impõe condições. E suas atitudes subsequentes, quando substitui o juiz Belário, travestida de Baltazar, decidida a desempenhar a função de advogado, não para resolver a situação de Antônio, mas para salvar seu próprio casamento, não deixam dúvidas de que ela não é frágil nem dependente, porém forte, inteligente, voluntariosa, astuta e autoritária. O  discurso de submissão de Pórcia pode ser visto como uma prova do poder de dissimulação da heroína: ela fala exatamente aquilo que Bassânio gostaria de ouvir para tornar-se desejável, visto que, na sequência, prepara o terreno para exercer poder total sobre ele, impondo mais condições no final da peça.

Quando Pórcia se traveste de homem para transitar em áreas proibidas às mulheres e assumir o papel de advogado no tribunal, ela profere uma fala que comprova a teoria do fluxo, da constante dissolução e reconstituição do “eu”. Ela confidencia a Nerissa, sua dama de companhia, e à plateia, que a mudança de roupa e de comportamento fará com que todos os homens do tribunal incorram em um erro de julgamento, pois pensarão que ela é dotada de algo que não possui. E, com efeito, assim travestida, apesar de não possuir o “falo”, mencionado em seu discurso, ela consegue manipular a lei por meio de truques e distorções e virar o julgamento de cabeça para baixo. O “falo” nesta instância simboliza não apenas a masculinidade, mas o poder que a masculinidade envolve. O travestimento da lei, uma prerrogativa dos homens, é realizado de maneira exemplar pela heroína, cuja identidade está oculta, trocada e disfarçada. 

Shakespeare captou no ar as inquietações do período em que viveu e escreveu. A estratégia do duplo disfarce, utilizado na criação de suas heroínas andróginas, elimina a diferença  entre a anatomia do performer e o gênero que está sendo representado. Como argumenta Butler (2003, p. 196): “[...] estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performer já  é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero  e performance”

Por meio da apropriação criativa e transformação da convenção do travestimento em linguagem cênica, Shakespeare dramatiza as ideias que pretendeu projetar. O dramaturgo constrói um texto performativo, no qual os elementos constitutivos, tais como convenções, elementos formais e as próprias palavras formam vozes de um complexo argumento que lhe permitiram interrogar as ortodoxias de sua cultura e subverter os binarismos de gênero vigentes em seu tempo.

Biografia do Autor

Anna Stegh Camati

Doutora em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana, com pós-doutorado em Estudos Shakespearianos; professora titular do mestrado e doutorado em Teoria Literária da Uniandrade.

Publicado
2021-11-22