Responsabilidade Social Universitária

concepção, contradições e prospecções

  • Simone Imperatore

Resumo

Refletir sobre a temática Responsabilidade Social Universitária (RSU) implica: a) discorrer sobre a razão de ser das instituições de ensino superior (IES), ou seja, sua pertinência social independentemente da natureza de mantença (pública, privada/comunitária); b) realizar imersões exploratórias acerca de seu manifesto compromisso com o desenvolvimento dos territórios de inserção (a exemplo de planejamentos estratégicos, missão, visão, valores/princípios, perfis de egressos, justificativa acadêmico-social de seus cursos) e; c) analisar as estratégias, administrativas e acadêmicas, que empreendem para a efetivação de tais propósitos. Essa é uma incursão particular de cada IES, considerando sua identidade, sua opção epistemológica de educação, sua natureza acadêmico-administrativa, a sua articulação com o território (entidades governamentais e não-governamentais, terceiro setor, empresas de todos os portes, movimentos e atores sociais).

No presente artigo, dadas as limitações editoriais, limito-me a ponderar sobre as concepções, contradições e prospecções da RSU na perspectiva do marco legal vigente, atribuindo a cada leitor a corresponsabilidade em sua autoavaliação institucional.

Referencio-me em Vallaeys (2006), em artigo publicado na Revista da ABMES intitulado “Que significa responsabilidade social universitária?”, para delimitar a concepção que lastreia a reflexão proposta, quer seja, a RSU como um projeto sistêmico (dimensões acadêmicas – ensino, pesquisa e extensão - e de gestão) que materialize a promoção do desenvolvimento locorregional, a partir da produção e aplicação de conhecimentos em estreita relação com as demandas sociais emergentes e a (trans)formação de pessoas éticas, solidárias e comprometidas com uma sociedade justa, equitativa e sustentável.

Sopesado o aspecto epistemológico da temática que, importante destacar, reveste-se de uma natureza polissêmica, no tocante ao marco legal, a RSU conquistou notabilidade com a aprovação da lei nº 10.861/2004 a qual instituiu o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior. Referida legislação consolida a RSU como obrigação institucional cujos indicadores, explícitos nos instrumentos de avaliação de cursos e de credenciamento/recredenciamento institucional, têm como foco: a inclusão social, a valorização da diversidade, o desenvolvimento econômico e social, a articulação com as políticas públicas, a defesa do meio ambiente, ações afirmativas de defesa e promoção de direitos humanos e da igualdade étnico-racial, a memória cultural, a produção artística e o patrimônio cultural.

Do exposto, uma breve tessitura entre os marcos epistemológico e pragmático da RSU reivindica um projeto de IES em que sua missão, os objetivos, as metas e os valores institucionais expressos no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), concretizam-se em políticas de gestão, de ensino, de extensão e de pesquisa (esta última, considerando a organização acadêmica), traduzindo-se em ações transversais em toda a estrutura organizacional, acadêmica e administrativa e, por meio de programas sociais relevantes, capazes de contribuir para o equacionamento de problemas/demandas locais e regionais e para a superação de distintas modalidades de exclusão e desequilíbrios regionais.

Nesse contexto, sopesadas suas intencionalidades, as IES brasileiras se deparam com desafios e contradições comuns ante à sua missão, ao marco regulatório e ao mercado educacional: a) desarticulação entre ensino, pesquisa, extensão e gestão; b) segregação entre universidade-sociedade e entre currículo e mundo do trabalho; c) irreconciabilidade dos modelos de ensino superior da Capes e do Mec dada a dissonância entre os indicadores e os critérios avaliativos; d) hierarquização das estruturas organizacionais com consequente reflexo nos rateios/investimentos orçamentários; e) subordinação da IES à lógica economicista de máximo rendimento e menor inversão e a modelos de avaliação produtivistas; f) hegemonia do conhecimento acadêmico reducionista, linear, disciplinar e fragmentado, e a disjunção entre a cultura humanista e a científica; g) influência de modelos e indicadores de avaliação exógenos; h) precarização das atividades laborais; i) massificação do acesso acadêmico sob a égide dos oligopólios do mercado educacional.

Cada um dos itens elencados é merecedor de uma reflexão meticulosa, o que não cabe nos limites do presente artigo. Destaco-os pois entendo estarmos diante do dilema da Esfinge: temos que decifrá-los para reorientar o posicionamento das IES em relação ao seu compromisso social: Qual a missão da universidade? Universidade para quê, para quem? Como repensar a educação à luz da experiência, da perspectiva de pautas socialmente relevantes (coerentes com a RSU) e de novas lógicas de aprender a partir do protagonismo discente, do diálogo de saberes e da ressignificação da educação como um ato político-emancipatório? Como rever nossas práticas de gestão: governança, transparência e articulação, intra e interinstitucional; clima organizacional e práticas de trabalho; meio ambiente e campus verde; direitos humanos; práticas leais e legais de operação e questões relativas aos públicos atendidos; comunicação, envolvimento e desenvolvimento com/das comunidades?

Reivindica-se uma IES para o século XXI norteada pelos princípios de democracia, acessibilidade universal e legitimação social das atividades científicas e tecnológicas; por redes de educação e formação científica, produção e socialização de conhecimentos; por uma ética científica orientada pelos interesses coletivos e pela preservação, proteção e difusão das heranças culturais dos diferentes povos. Esse novo sentido de educação alia o conhecimento científico-natural ao científico-social, depondo suas fronteiras convencionais e promovendo a RSU.

Superando o enfoque meramente legalista, entendo que o Plano Nacional de Educação (Brasil, lei nº 13.005, 2014) subsidia o percurso a ser construído pela IES ao propor a curricularização da extensão, articulada à pesquisa enquanto potência para currículos inovadores conexos às demandas territoriais e ao mundo do trabalho. E, mesmo que contrária à correlação da extensão como expressão de RSU (coerente com o referenciado anteriormente), entendo que a proposição do marco legal constitui um caminho próspero para a indissociabilidade das dimensões acadêmicas considerando uma concepção acadêmico-social de extensão, quer seja: norteada por objetivos acadêmicos relacionados ao perfil profissiográfico de formação dos cursos e por objetivos comunitários conexos às demandas locorregionais e à integração com as políticas públicas, sendo executada por discentes orientados por docentes a partir de itinerários formativos delimitados na matriz curricular dos cursos (programas, projetos e outras ações de extensão).

Extensão que apreende e problematiza a realidade, pesquisa que busca respostas para o equacionamento das demandas existentes, em um movimento de permanente retroalimentação curricular. Nesse âmbito, o art. 3º da Resolução CNE/CES nº 7 de 2018 elucida nossa reflexão: “(...) processo interdisciplinar, político educacional, cultural, científico, tecnológico, que promove a interação transformadora entre as instituições de ensino superior e os outros setores da sociedade, por meio da produção e da aplicação do conhecimento, em articulação permanente com o ensino e a pesquisa”. A referida normativa destaca a promoção de iniciativas que expressam o compromisso social das instituições de ensino superior com todas as áreas, em especial, as de comunicação, cultura, direitos humanos e justiça, educação, meio ambiente, saúde, tecnologia e produção, e trabalho. Os impactos da curricularização da extensão em articulação com a pesquisa na formação acadêmica são evidentes: a) ampliação do universo de referência; b) contato direto com as grandes questões contemporâneas; c) enriquecimento da experiência discente em termos teóricos e metodológicos; d) aprendizado contínuo.

No que tange aos impactos na gestão: a) a reinvenção/reestruturação das matrizes curriculares com vistas a contemplar os 10% de componentes curriculares em todos os cursos constitui oportunidade para alinhamento de objetivos acadêmicos (DNA institucional, DCNs, normas profissionais, imperativos mercadológicos, regionalização versus internacionalização) e objetivos comunitários (demandas, problemas e potencialidades), “territorializando” a IES, quer seja: (re)pensá-la em relação com/e atravessada pelos problemas sociais; b) a ressignificação dos processos avaliativos torna-se imperativa (aprendizados discentes em extensão, contribuição das atividades de extensão para o cumprimento dos objetivos do PDI e dos PPCs; a demonstração dos resultados/impactos alcançados em relação aos públicos participantes); c) a organicidade na gestão (acadêmica e administrativa); d) a articulação da graduação com o pós-graduação (inserção social dos PPGs); e) a melhoria dos indicadores de avaliação constantes no instrumento de avaliação e credenciamento institucional.

Se em um primeiro momento pareci cética em relação à RSU, espero ter contribuído para a prospecção de trajetórias de sua concretização no âmago de programas e projetos sistêmicos que atendam às demandas sociais emergentes.

Biografia do Autor

Simone Imperatore

Doutora em Diversidade Cultural e Inclusão Social; mestre em Desenvolvimento Regional; pós-graduada em Controladoria, e em Moderna Educação e Tecnologias Digitais Aplicadas à Educação; professora convidada na Universidade Nacional de Honduras – UNAH.

Publicado
2021-11-22
Seção
SUSTENTABILIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL