A CONSIDERAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA APLICAÇÃO DA LEI ANTICORRUPÇÃO

  • VIVIANE DUARTE COUTO DE CRISTO CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA - UNICURITIBA
Palavras-chave: função social da empresa, lei anticorrupção, acordo de leniência, consensualidade na Administração Pública

Resumo

A partir da análise da função social da propriedade prevista no art. 5º, inciso XXIII, foi definido novo paradigma empresarial, como a promoção do desenvolvimento nacional e a realização da justiça social, ultrapassando a simples ideia de lucro. A Constituição Federal de 1988 determinou, em seu art. 5º, inciso XXIII, que "a propriedade atenderá a sua função social". Mas não apenas isso, a Carta Magna também reconheceu como fundamentos da República Federativa do Brasil, dentre outros, "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (art. 1º, inciso IV), o que foi  reforçado pelo art. 170, em que se designa a função social da propriedade como princípio da ordem econômica (inciso III), a qual, por sua vez, encontra fundamento na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com vistas a assegurar a todos uma vida digna dentro dos ditames da justiça social (caput). Este papel constitucional da empresa se coaduna ao novo marco regulatório estabelecido para o combate e controle da corrupção no país, através da Lei nº 12.846/2013 – conhecida como “Lei Anticorrupção” ou “Lei da empresa limpa” –, que sujeita as pessoas jurídicas à responsabilização objetiva, nas esferas administrativa e civil, quando sua atuação resultar em atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não, conforme disposto em seus artigos 1º e 2º. O elastecimento da esfera de responsabilidade aos corruptores e corrompidos, sejam elas pessoas jurídicas e físicas, e integrantes dos setores público ou privado, atende às diretrizes de Convenções firmadas pelo Brasil com a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos), baseados em normas norte americanas e inglesas, com a aprovação em meio à forte pressão popular das manifestações ocorridas à época, no ano de 2013. Os atos de corrupção que contam com participação da empresa, além de ocasionarem o desvio de recursos públicos também afetam a sociedade (e o direito fundamental da boa administração pública) e a livre concorrência, o que motiva a intensificação do seu combate e prevenção, especialmente neste cenário de extremada escassez de recursos que ora se apresenta. Cabe considerar que o impacto para empresa que se vê diante das penalidades aplicáveis, mesmo sem que se configurar dolo ou culpa, podem ser fatais à sua sobrevivência, diante do extremo rigor das sanções previstas como a multa administrativa que variará “de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida” (art. 6º, inciso I), além de outras penalidades administrativas e judiciais como a suspensão das atividade e até a extinção da pessoa jurídica. A concepção de função social que é ponto de partida deste estudo, se dá além do mero cumprimento das leis, aproximando-se da busca da cidadania como resultado, numa perspectiva solidária para o bem comum e para a construção do Estado Social almejado pela Constituição de 1988. Também compreende o presente estudo a relativização da aplicação obrigatória de sanção pelo Poder Público, com a possibilidade de consensualidade e realização de acordo com o infrator, até porque não existe apenas um interesse público, e por isso a sanção não é o único remédio a atingí-lo. Também é certo que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, assim como o comando constitucional, são balizadores dos limites sancionatórios. Esta consensualidade na atuação administrativa se revela cada vez mais presente, seja através de previsões legais expressas e específicas, ou mesmo através da disposição do novo Código de Processo Civil que a favorece, assim como almejado pelo constituinte no preâmbulo da Constituição Federal de 1988. O processo administrativo sancionatório brasileiro passou por grande modificação nas últimas décadas, ampliando os horizontes da consensualização, muito em função de reflexo das experiências estrangeiras, assim como diante do inegável avanço da sociedade da informação. A atuação estatal que antes era autoritária e extremamente verticalizada passou a maior horizontalização, com o diálogo que gradualmente tem se estabelecido com a sociedade e os particulares, possibilitando a negociação com infratores. Este avanço, todavia, não foi contemplado amplamente na disciplina de Processo Administrativo, caminhando a passos lentos em legislações pontuais e desintegradas. Nesta contemporânea busca pela consensualidade através de meios alternativos, encontra-se o acordo de leniência, que surge como um instrumento efetivo de auxílio à identificação de infratores e obtenção de provas de crimes complexos, em troca de benefícios, sistema que já funciona há décadas em outros países, em especial nos Estados Unidos. No Brasil, com aceitação ainda tímida, o instrumento já é referência perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com ênfase no combate à formação de cartéis. Também previsto na Lei Anticorrupção, o acordo de leniência faz a aproximação do Estado com a empresa infratora, o que seria impensável há décadas atrás, no sentido de colaborar no desvelamento de crimes de corrupção de grande complexidade, assim como ocorre com as pessoas físicas na delação premiada (direito penal). Não se trata, porém, de negociar e dispor do interesse público, mas de alcançar o embasamento e a solução de processos acusatórios, o que não seria possível pelo método tradicional. Trata-se de uma "via utilitarista" eleita pelo legislador e que traz benefícios de redução de penalidades à pessoa jurídica infratora, que podem englobar àquelas previstas na Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), todavia não incluiu outras modalidades de sanção criminal e civil e não alcança as pessoas físicas obrigatoriamente envolvidas, como é o caso da improbidade administrativa, com o risco do colaborador de após assumir a ocorrência da ilicitude ter que enfrentar outras persecussões, denotando a possibilidade de falta de segurança jurídica ao interessado em furmar o acordo. Em outro viés, não há como ignorar que as grandes empresas, corporações e grupos econômicos envolvidos nos escândalos de corrupção recente, mobilizam enorme massa de trabalhadores, direta e indiretamente, e ainda fazem circular recursos de grande monta no mercado, o que em tese pode “justificar” a realização de acordos de leniência do ente privado infrator com o Poder Público, especialmente se cumprida a função social para obrigações responsáveis com a sociedade. Com isso, a consideração da “função social da empresa” pode surtir importante efeito, impactando na aceitação e mesmo na construção do acordo de leniência na atuação consensual da Administração Pública, na medida em que pode direcionar a ação administrativa para o ajuste. E, quando não suficiente para tanto, pode se prestar como fator de ponderação/mensuração das penalidades a serem impostas considerada na mensuração de seu valor. Com o fito de direcionar a pesquisa, ainda em desenvolvimento, é preciso identificar sobre a real possibilidade de que a “função social da empresa” possa impactar na aceitação e na produção do acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção. Se possível, em que medida? E, sendo negativa a resposta, questiona-se se ela então poderia influenciar na eleição e na intensidade das sanções porventura aplicadas? E como? A pertinência do estudo se dá em função de sua relevância acadêmica e social na busca de soluções para a aplicação da lei no efetivo combate à corrupção e para sua compatibilização com princípios norteadores do direito, inclusive da dignidade da pessoa humana, no que concerne à alternativa do exercício ordinário do poder-dever administrativo sancionador e da consensualidade que poderá ser estabelecida. São objetivos deste estudo a análise da Lei Anticorrupção, especialmente o acordo de leniência como alternativa ao exercício do ordinário dever-poder administrativo sancionador. Isto é, como alternativa às rigorosas sanções passíveis de imposição e, pior, mediante responsabilização objetiva das pessoas jurídicas envolvidas com atos de corrupção, como assim reconhecidos na forma da lei. E, diante desta possibilidade – de busca de “consensualidade” na solução de conflitos dessa particularíssima natureza, de eventual firmação de acordos de leniência –, investigar se e em que medida a “função social da empresa”, comprovadamente exercida pela empresa supostamente envolvida com atos de corrupção, pode e deve ser considerada pela Administração Pública para tanto. A pesquisa se desenvolve através de revisão bibliográfica, com a análise de doutrina nacional e estrangeira, mediante adoção dos métodos dedutivo e dialético. Também será realizada a verificação de correntes convergentes, dissonantes e/ou complementares, para a busca de conclusões à problemática estabelecida. Em relação às conclusões parciais da pesquisa, diante da fase intermediária de seu desenvolvimento, já foi possível identificar que a empresa, como geradora de empregos e riqueza, especialmente se comprometida com aspectos de desenvolvimento nacional e demais princípios, recebeu proteção constitucional, o que, em contrapartida, lhe exige real cumprimento da função social. Em face disso, parece arbitrária a indiferença na “escolha” entre firmar-se um acordo de leniência ou impor-se uma sanção administrativa (e/ou judicial) a uma empresa supostamente incursa na prática de ato de corrupção em prejuízo da administração pública nacional ou estrangeira e que efetivamente cumpra função social, numa perspectiva mais ampla, como já abordado. Sobre a discricionariedade na aceitação do acordo de leniência há entendimentos divergentes, aqueles que entendem ser totalmente discricionária esta decisão, e doutrinadores que identificam-no como ato vinculado, possibilitando suposto direito subjetivo do sancionado se preenchidos os requisitos legais. De qualquer forma, ainda não há discussão a respeito da consideração da função social da empresa a influir nesta decisão, que poderá ser aplicável se realizada interpretação sistematizada da Constituição Federal, sempre com vistas ao sopesamento dos interesses públicos e da melhor aplicação ao caso concreto.

Biografia do Autor

VIVIANE DUARTE COUTO DE CRISTO, CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA - UNICURITIBA
Mestranda em Direito pela Unicuritiba; Especialista em Administração Pública pela UniBrasil; Graduada em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Intervenção do Estado e da Administração Pública no domínio econômico e social: políticas públicas com vistas à promoção do desenvolvimento nacional sustentável (da sanção punitiva à sanção premial); Membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da OAB-PR; Procuradora Geral do Município de Campina Grande do Sul-PR (2005-2008); Assessora Parlamentar da Assembléia Legislativa do Paraná (2002-2004); ex-docente em matérias de direito (instituições de direito público e privado e direito empresarial) na FACSUL e Escola Superior de Advocacia - OAB/PR (direito administrativo) e ex-docente credenciada no IMAP. Advogada.
Publicado
2018-02-20